Lisboa do amolador de tesouras e da minha adolescência


Conheço o Bairro
Alto desde rapaz. Guardo daquelas ruas velhinhas muitas recordações. Mas ,
desse tempo, pouco mais resta que o seu casario. Está tão descaracterizado! Tão
diferente! Sou de uma pequena aldeia nortenha. Mal acabei a instrução primária,
vim procurar a vida na cidade alfacinha, como marçano - O meu primeiro
trabalho, foi numa mercearia na Calçada de Santana. Depois conheci vários
empregos. Era sempre a mesma coisa!... O marçano era o "moleque
negro" para todo o serviço - e a custo zero. Tinha que aprender a escola
antiga dos patrões. Servir o cliente com subserviência mas ir-lhe ao bolso nas
compras.. Todos queriam que roubasse umas gramas e eu não tinha jeito para
isso. Andei lá pelos penhascos agrestes atrás das ovelhas do nosso pastor e as
minhas mãos não estavam talhadas para maniganças aligeiradas(mas eficazes) nas
balanças. Acabavam por me mandar embora ou era eu a despedir-me . E lá voltava
andar com o saquito da trouxa às costas até conhecer novo patrão. Dormi muitas
noites no desvão das escadas ou nos terraços de cimento dos prédios mais
altos(subindo pela escada de serviço para que ninguém me visse. Receava os
vadios e envergonhava-me. Além disso, não tinha dinheiro para pagar nas
pensões. O pouco que me restava era para as carcaças. E também não me queriam
lá. Era menor. Uma manhã acordei de tal maneira enregelado, que, mal me levantei,
logo caí! - Oh como eram longas e frias aquelas horas da noite e da
madrugada!... Ouvia-as bater nas torres das igrejas... Custavam-me tanto a
passar!... Mas, uns dias
depois , lá acabava por arranjar outro patrão. Não pagavam quase nada... Era
quase de borla, sempre ao seu dispor e qualquer mercearia gostava de ter o
rapaz-marçano.





Todas essas vozes e imagens pertencem ao passado. Tudo ali se alterou e
está completamente desfigurado. Nem as tascas típicas nem as velhas mercearias!
Tudo isso já desapareceu. Até o fado é escasso, mudou de figurino e já é outro!
Agora há os bares! - Muitos bares e uma estranha diversão noturna - onde os
cheiros que vêm lá de dentro, misturados com os perfumes da moda dos habitués
aos pestilentos odores da recolha do lixo, se tornam insuportáveis! Preferia
mil vezes os cheiros de então. Não havia muito asseio nas ruas. Mas era
tudo mais natural e bem mais tranquilo!... Não se corria o risco de ser
assaltado por dá cá aquela palha. Não havia liberdade de expressão.Mas isso era
lá com os jornais... eu ainda não compreendia muito bem essas coisas. Só me apercebia
da escravidão... e dos patrões que me davam umas valentes caneladas - atrás do
balcão - sempre a sorrir para o cliente, como quem faz uma finta sem se mexer -
se não desse uns toques subtis na balança e desviasse umas gramazitas no peso
do cartucho de cada compra ao freguês e à freguesa. Não se roubava tanto como
agora mas roubava-se alguma coisa. O pequeno comércio vivia para sobreviver!
Não havia a violência e o descaramento de hoje. Confesso que já nem sei muito
bem o que vale mais: se a miséria pacífica daquela altura ou se a liberdade de
agora onde a pobreza anda à solta com o consumo da droga e a
insegurança...Apesar de tudo, não queria voltar a conhecer o tempo do
"botas"! - Sobretudo, já em adulto... Não é fácil deixar de me
lembrar dos murros da PIDE!... Puta que os pariu!...
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