As melhores homenagens que se podem prestar aos poetas, não creio que seja apenas depois de nos deixarem mas enquanto estão vivos e o seu pensamento ainda transmite a pulsação da mais bela poesia - É o caso de António Ramos Rosa - Já aqui me referi a ele noutras postagens - Mas, hoje, nesta noite fria e chuvosa de Inverno, em que fiz os meus sessentas e tais (domingo mais chato, nem sequer saí à rua) enquanto ouço Nana Mouskouri, recostado na minha cama, pois a minha mansarda fica num desvão do telhado e é deveras insalubre, lembrei-me dele e de sua mulher. Lembrei-me de recordar "o poeta da unidade vital" os agradáveis momentos que ambos me deram a oportunidade de conviver em sua casa e até em curtos passeios próximo da sua residência, na Barbosa du Bocage, em Lisboa
- Durante alguns anos fui uma das suas visitas regulares E, alguns deles, num período em que lhe transcrevia alguns dos seus versos (uns escritos directamente no momento em que ele os criava) outros em que ele sentia alguma dificuldade em os datilografar e cujo manuscrito (quase imperceptível) eu depois passava para o meu computador e lho devolvia impresso - Computador era palavra que ele não gostava de ouvir - Isto, porque, mesmo as palavras que ouvisse, tanto podiam ser o ponto de partida para um belo poema como a retração da inspiração poética - Uma ocasião ao ler-lhe uns despretensiosos versos sobre o mar, logo me ripostou com um lindo poema. Sim, ele, embora gostasse do isolamento e do seu silêncio criador, também adorava o convívio - Não era de muitas palavras, sobretudo ao fim da tarde, pois o seu dia começava cedo, mas a palavra - falada ou escrita (felizmente, creio que ainda continua a ser) era para ele como que o respirar e a expressão do sagrado: do "Invisível, o Indizível "o tomar pulso e o peso à leveza de cada sílaba através da voz ou numa página em branco - Conservo em cassete vários poemas lidos e alguns amistosos diálogos, bem como vários desenhos que me ofereceu. Faço-lhes aqui votos sinceros de boa saúde, que, pelo que depreendi, da última vez que visitei o casal na residencial Mantero, já ia um bocado abalada.Com um abraço amigo a ele e à Agripina Costa Marques, excelente poeta, sua amiga e companheira de todas as horas, que me recebia em sua casa como se fosse um dos bons amigos.E cujas fotografias (que fiz a ambos) guardo no álbum das minhas recordações, com a maior admiração e carinho.
Sem dizer
o fogo – vou para ele. Sem enunciar as pedras, sei que as piso – duramente, são
pedras e não são ervas. O vento é fresco: sei que é vento, mas sabe-me a fresco
ao mesmo tempo que a vento. Tudo o que sei, já lá está, mas não estão os meus
passos nem os meus braços. Por isso caminho, caminho porque há um intervalo
entre tudo e eu, e nesse intervalo caminho e descubro o meu caminho.
Mas entre mim e
os meus passos há um intervalo também: então invento os meus passos e o meu
próprio caminho. E com as palavras de vento e de pedras, invento o vento e as
pedras, caminho um caminho de palavras.
Caminho um caminho de palavras
(porque me deram o sol)
e por esse caminho me ligo ao sol
e pelo sol me ligo a mim
E porque a noite não tem limites
alargo o dia e faço-me dia
e faço-me sol porque o sol existe
Mas a noite existe
e a palavra sabe-o.
(...) O poema é devorado letra a letra por um silêncio
que o atravessa sem
tocar nas palavras nem no
silêncio do poema
Na aridez do frio
Nenhum insecto vibra
nem uma fibra estala
Quem pode erguer o canto
sem uma pedra
sem uma sombra
sem um grito
Não há sequer a sombra de um grito
Nenhuma sombra é um grito
A impossibilidade do canto é talvez a possibilidade
de um impossível canto. Com as palavras nuas e
vazias de uma pobreza exausta talvez possa ainda
ouvir o rumor de um chão e um silêncio de ervas
e de frases na ausência do amor e no silêncio de
um corpo destroçado
Só a palavra em branco
e a ferida sem nome
no silêncio
O sangue? Será sangue? No insondável silêncio em
que se abismam as palavras?
Só no silêncio da página poderá erguer-se a palavra
do silêncio inascessível o centro ausente da linguagem
o extremo em que a palavra se destrói e renasce no grito
em que se cala a palavra"
Excerto de um poema do livro "O Centro na Distância"
de António Ramos Rosa
19 de Maio (segunda)1980 - Excertos de conta-corrente e - de Vergílio Ferreira
"Ontem, como muitas vezes, fui a casa do Ramos Rosa. Vou lá aos domingos, pela manhã, para um pouco da cavaqueira. Quase sempre trago livros, ele empresta, tem-nos sempre muito bons. E filosofamos um pouco sobre política, literatura, chatices da vida. Não é bom conversador o Rosa. A gente passa-lhe a bola e ele mete-a no bolso. Cala-se, hesita, ou diz apenas que sim.
Ontem diz que não. Foi a propósito da "inteligibilidade" da poesia. Está na berra, aliás, essa coisa da "inteligibilidade", tem sido mote para muita glosa. Ramos Rosa deve ser quem mais sabe da poesia em Portugal. Conhece-os mesmo de uma troca muito activa de epistolografia . Um dia se há-de saber com alguma estupefacção quanto ele conviveu e tem sido mote para muita por epístola com os grandes nomes estrangeiros da poética contemporânea. Bom. Portanto, a "inteligibilidade". Isto a propósito do seu último livro, o Incêndio dos Aspectos, que eu prefaciei. Rosa está contente com o seu trabalho. Poesia "nova" no seu currículo, mesmo no currículo nacional. Várias das visitas que teve- porque a gente vai visitá-lo porque um pouco ao modo como os outros vão a Meca ou a Fátima ou a outro santuário - enalteceram-lhe os versos, discorrendo sobre eles com abundância. Já mo disse ao telefone. Porque, o seu convívio, desdobra-se pelo telefone e pela epístola." (...)
20 - Junho (sexta) Sento-em aqui , diante de uma folha de papel, e não sei que escrever.Sei que só preciso de escrever como quem precisa de andar, de se espegriçar, de fumar um cigarro. Decerto há sempre que dizer. O que nem sempre há é a motivação para escrever o que há, ou seja interesse em explorar isso para ser coisa para que se escreva. Mas, a certa altura, toca o telefone. É o Ramos Rosa. Telefona quase todos os dias pela necessidade de premente de comunicar com alguém. Como eu sinto vontade de escrever, ele sente-a a telefonar. Como eu não sei que dizer, ele não sabe que dizer. Mas hoje disse alguma coisa. Alguém lhe dissera uma frase, o Arnaldo Saraiva, suponho, e a frase trabalhou-lhe o juízo. Era assim: "o pior de tudo é a morte". É uma frase banal- disse ele. E realmente. Aliás, esta frase, ou uma sua gémea, já a vi atribuída, salvo erro, ao próprio Satline. Mas depois da manipulação ou dos vários percursos que lhe fizera na mente, deu isto: "o pior de tudo não é a morte; o pior de tudo é que ela seja pior" Teria isto sentido que fosse de o ser? - perguntou-me. Tinha. Para lho provar, dei umas voltas à frase, amassei-a, estendi-a como se faz a massa do pão. O resultado não era bem o que ele julgava. Mas admitiu que fosse resultado de se aceitar. Citei mesmo de Ácio , um primitivo latino, uma frase, uma frase que não tinha muito ver com a dele, mas enfeitava por ser uma língua morta, ou seja, inscrita já no eterno: mors misera nom est, aditus ad mortem miser est - "o que custa não é estar morto, o estar para morrer". E em fase desta sublime dissertação, demos um abraço pelo telefone e desligámos. E, em face disso, acabei afinal por ter alguma coisa para escrever" Vergílo Ferreira
Vergílio Ferreira
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